por Renato Neves
9 Outubro 2017

Para muitos autores, nomeadamente Orlando Ribeiro, a introdução e a rápida expansão da cultura do milho ocorrida no início do século XVI, está na base de uma verdadeira revolução agrária no Noroeste de Portugal (e Galiza) a qual esteve, senão na génese, pelo menos no significativo incremento de sistemas complexos de regadio através de açudes, levadas, e levantamento de socalcos.

Do ponto de vista social esta revolução terá tido também consequências muito vastas, a vários níveis, eventualmente com o reforço de uma economia agrária comunitária, que implicava a gestão das águas para a rega e a entreajuda em determinados trabalhos relacionados com o ciclo cultural do milho. Moinhos de água, fornos comunitários, eiras e espigueiros, são também elementos construtivos que certamente tiveram um incremento significativo pelos séculos seguintes à introdução desta cultura.

 

Principalmente no Alto-Portugal é muito comum existirem conjuntos de espigueiros na periferia das aldeias (fotografia de Miguel Pimenta)

Conjunto de espigueiros na região de Castro Laboreiro (Alto-Portugal). Fotografia de Miguel Pimenta

 

Detenhamo-nos nos espigueiros, construções destinadas à secagem e armazenamento do milho após a debulha, também conhecidos localmente por caniços, canastros, piornos ou hôrreos. Trata-se de construções emblemáticas, de que em Portugal existem diversas tipologias, espalhadas pelos territórios do Noroeste e do Alto-Portugal, com os primeiros exemplos, de planta mais sobre o quadrado e com predomínio do material construtivo em madeira, a surgir ainda a sul do Douro, nas Terras da Feira e Cambra, e os últimos já encostados à Galiza, no Riba-Minho e Peneda, de planta rectangular estreita, construídos em granito, ou granito e xisto em zonas de transição, com a utilização da madeira apenas no ripado, ou em alguns casos mesmo sem ripado, sendo o arejamento assegurado pelos intervalos da cantaria.

A sua disposição diz-nos sempre algo acerca do contexto social; isolados representam a economia e o trabalho individual, agregados em núcleos na periferia das aldeias, por norma junto a eiras construídas ou “naturais” (lajedos ou afloramentos graníticos), representam geralmente modos de vida mais comunitários.

 

O ripado em madeira sobre estruturas de granito é comum a diferentes tipologias de espigueiros

Exemplo de ripado em madeira, preenchendo áreas laterais emolduradas por cantaria em granito

A salvaguarda do grão dos ataques dos roedores é assegurada nos espigueiros pelo seu assentamento em pilares, defendidos por escudos e sapatas na sua parte superior

Pilares de suporte de espigueiros defendidos por escudos ou sapatas evitando o acesso de roedores e outros animais aos espigueiros

Nos espigueiros as portas são normalmente sobrelevadas com uma soleira alta garantindo uma protecção suplementar contra os roedores

As portas com soleiras elevadas constituem uma defesa suplementar contra o ataque dos roedores

Embora as cruzes sejam os elementos mais característicos dos remates de cobertura dos espigueiros, existem também relógios de sol e elementos escultóricos variados. Desenhos de Fernando Galhano (extraídos da obra: Desenho Etnográfico de Fernando Galhano, I – Portugal, INIC – Centro de Estudos de Etnologia, Lisboa 1985)

Exemplos de remates de coberturas de espigueiros desenhados por Fernando Galhano (extraídos da obra: Desenho Etnográfico de Fernando Galhano, I – Portugal, INIC – Centro de Estudos de Etnologia, Lisboa 1985)

 

Os aspectos funcionais que determinam as suas características prendem-se essencialmente com as necessidades de arejamento para assegurar a secagem, daí a existência dos ripados de madeira, ou os intervalos entre as cantarias, e a defesa contra o ataque dos roedores, ou outros animais, daí os pilares defendidos por escudos ou sapadas e as portas “suspensas”. Uma boa parte daqueles que são construídos em pedra exibem uma cruz no topo, elemento sem dúvida referente a uma certa sacralização do pão, neste caso por via do grão. 

Existem autores que sustentam a hipótese destas construções terem sido introduzidas na Península pelos suevos, não apenas por testemunhos linguísticos, mas também por existirem exemplos semelhantes em territórios de origem destes povos; no entanto a maioria dos espigueiros estudados e datados no noroeste peninsular foram construídos nos séculos XVIII e XIX.

 

O espigueiro de Carnota (Galiza). Um dos maiores espigueiros do Noroeste Peninsular, construído na segunda metade do século XVIII, tem 37,74 metros de comprimento e está classificado como monumento nacional

O monumental espigueiro de Carnota (Galiza)

 

Por norma os espigueiros apresentam plantas rectangulares com dimensões entre os 7 a 12 metros de comprimento, por 1,5 a 5 metros de largura, porém existem alguns muito maiores, como o famoso espigueiro de Carnota (Galiza), com os seus impressionantes 37,74 metros de comprimento, construído entre 1768 e 1783, pelo arquitecto Gregório Quintela, entretanto classificado como Monumento Nacional de Espanha.

 

Espigueiro em mau estado de conservação na serra de Montemuro. Note-se o emprego do granito e do xisto na base, a cobertura em ardósia e o corpo inteiramente construído em madeira

Espigueiro em mau estado de conservação na serra de Montemuro.

 

Estando muitas destas paisagens em colapso ou transformação, os espigueiros enfrentam os mesmos problemas havendo, apesar de alguns conjuntos classificados, um pouco por todo o lado exemplos de ruína, degradação e “recuperações” inapropriadas, por vezes utilizando tijolos em substituição dos ripados em madeira, não sendo também raros os casos de venda de espigueiros para jardins particulares.

 

Publicação do Ministério da Economia datada de 1942 destinada a promover a cultura do milho

Milho à terra!

 

Finalmente, resta ainda concluir que não houve apenas em Portugal uma “revolução do milho” ocorrida no Noroeste nos séculos XVI / XVII, pois foi uma cultura muito promovida pelo Estado em diferentes períodos que originaram outras tantas “revoluções”. A construção de barragens e a instalação de regadios, foram em parte destinados à cultura do milho, que veio a ocupar extensas zonas de outras culturas, nomeadamente vinha no Baixo-Mondego e olivais no Ribatejo, que acarretaram grandes modificações nas paisagens agrárias dessas regiões ocorridas a partir das décadas de 30 e 40 do século XX; pelos finais desse mesmo século veio uma nova revolução, a dos pivots de rega que permitiam a instalação desta cultura (e de outras, nomeadamente o girassol) mesmo fora das áreas servidas por perímetros de rega. Em muitas regiões instalou-se um novo tipo de paisagem “agro-industrial”, cujos padrões territoriais deixaram de ser as parcelas “lineares” e passaram a ser os círculos definidos pelos próprios pivots.